sexta-feira, 11 de abril de 2014

A fama da lama: o manguebeat

O movimento manguebeat foi um das últimas expressões de originalidade e frescura na música brasileira, que a dia de hoje parece ter sido dobrada as intenções das grandes empresas discográficas. Nascido em Recife no fim do século passado, este estilo convulsionou a cena musical apresentando um produto ousado e alternativo, que chegou a aquecer  a uma geração pernambucana órfã de identidade.

Este maneira de sentir a música nasceu a partir de um sentimento social, o que afogava ao pernambucano com a recessão dos noventa. Esta crise foi o fruto de uma ofensiva neoliberal que esqueceu as demandas sociais. Recife, que por eles então era considerada a quarta pior cidade do mundo para viver, propiciava um caldo de cultivo idôneo para o surgimento de movimentos contestatários.

É só uma cabeça equilibrada em cima do corpo
Escutando o som das vitrolas, que vem dos mocambos
Entulhados a beira do Capibaribe
Na quarta pior cidade do mundo
Recife, cidade do mangue
Incrustada na lama dos manguezais
Onde estão os homens carangueijos
Minha corda costuma sair de andada
No meio da rua em cima das pontes
É só uma cabeça equilibrada em cima do corpo
Procurando antenar boas vibrações
Procurando antenar boa diversão

(Antene-se / Chico Science e Nação Zumbi)

Embora sendo naqueles momentos uma cidade praticamente marginal, a sua riqueza cultural permaneceu latente, e desse poso nasceria o manguebeat: um estilo que pretendia reunir músicas internacionalmente na moda - como o hip-hop, o rock, diferentes vertentes da música eletrônica ou o funk- com ritmos tradicionais brasileiros, como o maracatu, o coco, a ciranda ou o caboclinho.

O idealizador principal do estilo foi Francisco de Assis França, Chico Science, filho de Olinda. Este pernambucano, que tinha tido aproximações com a dança e diferentes movimentos do Hip-Hop, começou a tocar com o bloco afro “Lamento
Negro”, misturando uma série de ritmos e conceitos que jamais se tinham proposto.



Essa banda de garagem acabou chamando-se Nação Zumbi, um conjunto que conduziria nos anos noventa as maneiras de pensar e de sentir a música entre uma grande parte dos jovens brasileiros. Science considerou que aquele momento era o adequado para “livrar-se dos grilhões do tradicionalismo abandonando a energia negativa do melaço de cana e energizando o ambiente fértil da lama”.

Esta lama, tão própria dos estuários
limítrofes à cidade de Recife, era o símbolo ideal para representar o sentimento de uma população desaproveitada e estancada. Por conseguinte, o mangue era um nome evidente para este movimento cultural, pois a dita cidade foi construída sobre manguezais. Neles, normalmente, habitava a população mais pobre das favelas da cidade.

E a lama come mocambo e no mocambo tem molambo
E o molambo já voou, caiu lá no calçamento bem no sol do meio-dia
O carro passou por cima e o molambo ficou lá
Molambo eu, molambo tu, molambo eu, molambo tu...

(Rios, pontes e overdrive / Chico Science, Fred 04)

Com a ajuda de Fred-04, o outro grande idealizador do movimento e componente de Mundo Livre S.A., foi lançado em 1992 o manifesto “Caranguejos com cérebro", um escrito onde se explicavam suas principais preocupações e aspirações. Zerocuatro, que era jornalista de profissão, resumiu em três grandes blocos o porque da necessidade de uma mudança no pensamento, utilizando metáforas poderosas unidas ao ecossistema da região.

Esta mudança vinha dada pela necessidade de desnaturalizar a noção de rusticidade e ruralismo que costumava identificar à região. Esta concepção, segundo eles, era imposta pelas elites locais no seu esforço para preservar as estruturas sociais por meio da autenticidade da cultural regional.

Desta maneira o novo movimento tentava se desatar do discurso etnocêntrico do descaracterização da cultura brasileira, construindo uma arte erudita que resgatava ritmos tradicionais com as músicas mais influentes do resto do planeta. Como disse Chico Science: “Pernambuco embaixo de dois pés e minha mente na imensidão”.

Apesar dos obstáculos postos mais reacionários, tanto Nação Zumbi como Mundo Livre S.A. tiveram um grande sucesso de público e críticas, nacional e internacionalmente. Este estilo, denominado alternativo por muitos em base nas suas origens, conseguiu pôr de acordo a uma ampla geração de jovens brasileiros.

Depois do sucesso inicial de “Samba esquema Noise” de Mundo Livre e “Da Lama ao Caos” de Nação Zumbi em 1994, e o posterior deste último grupo com “Afrociberdelia” em 1996, a projeção do manguebeat viu-se algo freada com a morte de Chico Science num acidente de tráfego. Contudo, o movimento segue ainda latente e muitos dos grandes artistas brasileiros de hoje em dia reconhecem a grande influência que o manguebeat tem nas suas carreiras. 



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